Há 10 anos, numa noite de 27 de janeiro em Santa Maria (RS), um incêndio na Boate Kiss matou 242 pessoas e deixou 636 feridos. A tragédia, que chocou o país e o mundo, levantou uma série de questões sobre o quanto os estabelecimentos estavam preparados para esse tipo de ocorrência. Em Santa Catarina, mudanças na legislação ocorreram, endurecendo normas de segurança e dando aos Bombeiros Militares o poder de fiscalização.
Após a tragédia, em 2013, um projeto de lei começou a tramitar na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc), regulamentando o poder de polícia administrativa ao Corpo de Bombeiros Militar. A mudança já era prevista na Constituição Estadual de 1989, mas dependia de regulamentação para ser efetivada. Mas só em novembro, após um incêndio químico num armazém em São Francisco do Sul, a lei foi aprovada no plenário.
A lei estadual 16.157/13 foi regulamentada pelo decreto 1.957/13 (substituído em 2022 pelo decreto 1908/22). Com essa alteração, o CBMSC passou a ter o poder de polícia administrativa, obtendo a capacidade de embargar ou interditar imóveis, aplicar advertências e multas para as edificações que se encontrem em situação irregular nos quesitos de Segurança Contra Incêndio e Pânico. Houve também a proibição de queima de fogos de artifício em ambientes fechados.
De 2013 até 2023, a corporação, com o poder de polícia administrativa para os casos necessários, somou as seguintes ocorrências:
Multas: 1.7543
Advertências: 2.904
Cassações: 144
Embargos: 1.184
Interdições: 528
Processo Administrativo Infracional: 22.303
Aplicação do poder de polícia e a redução dos casos de incêndio
Nesses últimos 10 anos, o que se observou foi uma tendência de diminuição da quantidade de incêndios atendidos pelo CBMSC. Dados de de 2022, comparados aos de 2014, a redução foi de cerca de 25% de casos de incêndios.
Outra ação que também contribuiu para reduzir essas ocorrências foi o aumento da abrangência do serviço de investigação de incêndios no CBMSC. Com ele, todos os Batalhões de Bombeiros Militar passaram a investigar as causas da maior parte dos incêndios ocorridos, tendo obtido a marca de 89% dos incêndios investigados em 2022.
Mais mudanças com a aprovação da Lei Kiss
Em março de 2017 uma lei federal foi aprovada, reforçando a reforçando a competência fiscalizatória dos Corpos de Bombeiros Militares do país. De acordo com o texto, cabe aos bombeiros militares planejar, analisar, avaliar, vistoriar, aprovar e fiscalizar as medidas de prevenção e combate a incêndio e a desastres em estabelecimentos, edificações e áreas de reunião de público.
Com a lei também se tornou uma obrigatoriedade ter disciplina de Segurança Contra Incêndio nos cursos de Engenharia e Arquitetura. A nova legislação ainda inseriu no rol dos crimes o crime de excesso de lotação. Desde então os responsáveis de casas noturnas que descumprirem a lotação máxima permitida irão responder criminalmente.
Além disso, em 2018, os bombeiros militares deram início a alterações normativas, que permitiram mais celeridade nos processos de Segurança Contra Incêndio.
Operações de fiscalização e orientação
As Seções de Segurança Contra Incêndio dos quartéis dos Bombeiros Militares irão fiscalizar bares e casas noturnas de Santa Catarina até 5 de fevereiro. A ideia é reforçar a cultura preventiva.
As fiscalizações irão mostrar para a população itens que devem ser indispensáveis para se observar em bares, baladas e demais locais com reunião de público, para garantir a segurança dos cidadãos.
Cabe aos integrantes da Seções analisar a segurança destes locais, verificando as medidas de prevenção e analisando se há a quantidade de pessoas corretas, conforme previsto, se as saídas de emergência estão desbloqueadas e ainda se não há a utilização de artifícios pirotécnicos no interior das edificações.
Na noite desta quinta-feira, 26, uma fiscalização foi feita em bares e casas noturnas de Florianópolis. De acordo com os bombeiros militares, todos os estabelecimentos vistoriados estavam regulares. O CBMSC reforça que em caso de emergência pode ser acionado o telefone 193.
Prevenção a incêndio é cultural, dizem especialistas
Controle de fumaça e de revestimentos, mais saídas de emergência, hidrantes, uma placa visível com informações sobre lotação, a previsão de mais extintores, análise de riscos… O que poderia ter evitado o alcance do incêndio que matou 242 pessoas em 27 de janeiro de 2013, na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), tem nome: prevenção e proteção contra incêndio.
Após a tragédia, entidades e pesquisadores pressionaram para uma legislação que evitasse outros casos como aquele. Mesmo assim, isso não é o bastante, segundo especialistas consultados pela Agência Brasil. Conforme afirmam, é necessária uma mudança cultural em relação ao tema no país.
Para a professora de engenharia Angela Graeff, pesquisadora em segurança contra incêndio, há uma mudança de cenário após a tragédia. A docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) explica que, na época do acidente, a legislação de segurança contra incêndio, que era de 1997, não contemplava conceitos inovadores.
“Por exemplo, não se levavam em conta medidas de segurança estrutural, de controle de materiais de acabamento e de revestimento. Controle de fumaça também se falava muito pouco”, afirma Angela Graeff, que atualmente está como professora residente na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
“A legislação anterior considerava mais informações sobre o prédio, a edificação em si e não tanto o usuário. Mencionava-se saída de emergência, mas o principal foco estava na manutenção do patrimônio (com o foco no seguro). A Lei Kiss (inicialmente no Rio Grande do Sul, a 14.376/2013 , e depois Federal, a 13.425/2017) mudou o viés para a segurança do usuário”. A professora considera que a legislação brasileira não deve a outras regras pelo mundo e é moderna. No entanto, observa que os proprietários e responsáveis pelas edificações precisam colocar a prevenção como prioridade e não desmerecer os riscos.
Ela explica que esse, de verdade, deve ser o foco: quais são as condições para que todos saiam da edificação em sua integridade física, e só depois deve se pensar em manter o patrimônio. “Esses foram os pontos principais da legislação, além de ser bem mais rígidas em termos de penalidades, prazos e processos do que a lei anterior”. A lei Kiss estipula que os profissionais precisam cruzar as diferentes informações, como da altura e do tipo de ocupação e o tipo de vocação do empreendimento.
O engenheiro Adão Villaverde era deputado no Rio Grande do Sul e presidiu a comissão que alterou a legislação. Ele detalha que a lei à época era atrasada e a tragédia foi um emblema do individualismo e do descaso. “A lei era extremamente deficiente. Assim, resolvemos ter conteúdos bem definidos, parâmetros rigorosos e definir as responsabilidades, as competências e as atribuições”. Ele exemplifica que, antes, uma fábrica de gelos ou uma fábrica de fogos de artifício, com a mesma área e com a mesma altura, poderiam ter plano de prevenção contra incêndio semelhantes.
“Além de altura e área, a capacidade de lotação, as rotas de fuga, o controle de fumaça e a carga de incêndio (o potencial calorífico de uma edificação).”
A tragédia
O incêndio na Boate Kiss foi provocado por um sinalizador acionado por um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no local. O fogo do artefato atingiu a espuma acústica que cobria o teto da casa e rapidamente uma fumaça tóxica tomou conta do ambiente.
O pânico generalizado e a falta de saídas de emergência impediu que as cerca de 1,5 mil pessoas presentes deixassem a boate em segurança. A maioria das 242 vítimas era de jovens universitários de seis cursos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) que estavam promovendo a festa. Outras 680 pessoas ficaram feridas ou tiveram complicações respiratórias por terem inalado a fumaça tóxica.
Ainda em 2013, o inquérito da Polícia Civil gaúcha sobre o caso indiciou 16 pessoas e apontou outras 12 como responsáveis pela tragédia. O Ministério Público, no entanto, denunciou quatro pessoas por homicídio: os donos da boate Kiss, Mauro Hoffmann e Elisandro Spohr; e dois integrantes da banda, Marcelo dos Santos e Luciano Leão. Os quatro aguardam julgamento em liberdade.
Na Justiça Militar, foram condenados o então comandante do 4º Comando Regional dos Bombeiros, Moises da Silva Fuchs, e o capitão Alex da Rocha Camilo, que em 2013 era chefe da Seção de Prevenção a Incêndios. Ambos foram condenados por inserção de informação falsa em documento público. O tenente-coronel Daniel da Silva Adriano, que assinou o alvará de funcionamento da boate Kiss, foi absolvido.
Após dez anos da tragédia ninguém foi responsabilizado. Familiares e vítimas da tragédia, que completou uma década na sexta-feira, 27, ainda aguardam o desfecho judicial.
Os sócios da boate Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann; o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos; e o auxiliar Luciano Bonilha Leão foram acusados de homicídio pelo Ministério Público do Estado (MPE). Em 2021, eles foram condenados pelo Tribunal do Júri a penas de 18 a 22 anos de prisão. Sob o argumento de descumprimento de regras na formação do Conselho de Sentença, o Tribunal de Justiça do estado anulou a sentença e revogou a prisão em agosto do ano passado. O MPE recorreu da decisão.
O delegado regional de Santa Maria, Sandro Luís Meinerz, que conduziu a investigação do caso, lamenta a demora da justiça.
“Estamos fechando agora no dia 27, dez anos dessa absurda tragédia e, infelizmente, nenhuma resposta final desse processo foi dada para sociedade e, principalmente, para os pais e familiares dessas vítimas que morreram, fora aquelas que ficaram sequeladas”, disse.
A defesa de Luciano Bonilha afirma que a sentença do júri, que foi anulada, era injusta. O advogado Jean Severo espera uma solução no fim deste ano. Já o advogado de Mauro Londero, Bruno Seligman de Menezes espera que a anulação seja mantida e que um novo julgamento tenha uma sentença justa.
Segundo a advogada do vocalista Marcelo Santos, Tatiana Vizzotto Borsa, o músico segue trabalhando em São Vicente do Sul, enquanto aguarda a decisão de tribunais superiores. A defesa de Elissandro Spohr não quis se manifestar.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul disse, em nota, que além dos quatro réus por homicídio, 19 pessoas, entre bombeiros e ex-sócios da boate, foram acusadas por crimes como falsidade ideológica e negligência.
Outras 27 pessoas foram denunciadas por falsidade ideológica, porque assinaram documento dizendo morar a menos de 100 metros da boate, o que foi comprovado como mentira.