As boas notas e a assiduidade na escola não garantiam motivação para a aluna Elisa Jasko vivenciar a rotina da sala de aula. Moradora de General Carneiro (PR), a estudante se sentia tomada por apatia e desinteresse. Já a preocupação de Marilene Mikoaiaewski, da cidade de União da Vitória, no mesmo estado, era como viabilizar equipamentos adequados para que as duas filhas, alunas do ensino fundamental e médio, assistissem às aulas on-line, já que as escolas se encontravam fechadas em função da pandemia de Covid-19.
Apesar de realidades e problemas distintos, Elisa e Marilene têm em comum a atenção que receberam do Programa de Combate à Evasão Escolar desenvolvido em União da Vitória, município localizado no Vale do Iguaçu. Coordenado pelo juiz de Carlos Eduardo Mattioli Kockanny, titular da Vara da Família e Sucessões, Infância e Juventude, o programa iniciado em 2008 vem transformando a vida de pessoas como as duas estudantes.
A ação alcança toda a comarca de União da Vitória, formada pelos municípios de Cruz Machado, Bituruna, Porto Vitória, Paula Freitas e General Carneiro e acompanha de perto o desempenho de estudantes e familiares dessas localidades. Por meio do programa, Elisa foi encaminhada para sessões de microfisioterapia, decisivas para que ela retomasse o interesse pelos estudos. “Eu tinha dificuldade de me comunicar e me faltava disposição. Isso ocorria não apenas na escola”.
Hoje, enquanto aguarda o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em que concorre a uma vaga para o curso de publicidade e propaganda, a estudante participa de exposições onde mostra o talento que possui para desenhos. A mais recente ocorreu no Centro Universitário Vale do Iguaçu (Uniguaçu). Marilene, por sua vez, recebeu um computador do programa que permitiu que suas crianças, mesmo em casa, prosseguissem com os estudos. “Os equipamentos foram fundamentais. Sem eles, minhas filhas não teriam como acompanhar as aulas e alcançar bons resultados na escola.”
Prevenção
O Programa de Combate à Evasão Escolar da comarca de União da Vitória é uma iniciativa do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), que mobiliza toda rede de proteção local às crianças e aos adolescentes, incluindo o Núcleo Regional de Educação (NRE), secretarias estaduais e municipais de Educação, Saúde, Assistência Social, Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), Ministério Público e Conselhos Tutelares. A ação foi reconhecida na primeira edição do Prêmio Prioridade Absoluta, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na categoria Juiz, eixo Protetivo.
De acordo com o juiz Mattioli, a iniciativa é uma reformatação do atendimento do Judiciário a demandas sensíveis envolvendo crianças e adolescentes, cujo foco busca antecipar e evitar a ocorrência de conflitos. A articulação do Judiciário com a rede de proteção à criança e ao adolescente, conforme o juiz, é um dos motores do programa. “O Poder Judiciário está inserido na rede de proteção e não pode olhá-la de fora. Ele integra a rede e nosso formato de trabalho mobiliza todos esses atores.”
Mattioli implementou 38 projetos de promoção de cidadania na comarca de União da Vitória, vários deles voltados para a educação. São essas iniciativas, que mobilizam diferentes atores públicos, cidadãos, empresas e entidades de classe, que viabilizam atenção à saúde de alunas como Elisa e o fornecimento de computadores para as filhas de Marilene. “A pandemia gerou uma campanha com intensa participação da comunidade com doação de aparelhos celulares, notebooks e computadores que chegaram a alunos cadastrados pelas escolas conforme critérios socioeconômicos.”
O magistrado ressalta que a prevenção à judicialização, uma política pública estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é um dos fatores de inspiração do Programa de Combate à Evasão Escolar. “Frequentamos e vivenciamos a realidade das escolas para antecipar questões que, futuramente, poderiam chegar até nós de maneira agravada”, afirma. Mattioli destaca a articulação do Judiciário com a rede de proteção à criança e ao adolescente como fundamentais para obtenção de bons resultados.
”O aluno evadido vai chegar ao Poder Judiciário, como regra, de várias maneiras: por envolvimento em delito, consumo abusivo de álcool e outros tipos de drogas, gravidez precoce, relacionamentos precoces e abusivos, violências sexual ou familiar e situações diversas de risco”, conta.
Conforme explica o juiz, o programa identifica quadros que envolvam riscos de evoluir para evasão escolar e antecipa a abordagem de maneira ativa. Mattioli ressalta que, quando os casos chegam à Justiça, o grau de dificuldade para solução é mais elevado. “A situação que origina a evasão escolar já é complexa e para superá-la, envolvemos, além da rede de proteção, a família do aluno.”
Segundo ele, a receptividade de mães e pais ao trabalho é positiva e fundamental para o retorno do estudante. O juiz cita, como exemplo, casos de bullying que afastam crianças e jovens da escola e explica que a ação com esses alunos exige articulação da família, das escolas e de toda rede de proteção.
A evasão escolar, observa o magistrado, é fruto de inúmeros problemas sociais que se repetem nas diversas comarcas brasileiras, independentemente do grau de prosperidade social e econômica. “O fenômeno atinge diretamente aquele que está em desenvolvimento – a criança e o adolescente – que ainda não tem condições de suprir as próprias demandas e depende de uma atuação mais qualificada do poder público. Assim, agimos para que retornem à sala de aula.”
Pandemia
A evasão escolar, que sempre foi um problema grave no país, assumiu contornos desafiadores com a pandemia da Covid-19. O país computava 1,1 milhão de alunos sem acesso à escola em 2019, número saltou para 5,1 milhões em 2020. Os dados, que integram recente pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), apontam que a superação de tamanho retrocesso exigirá empenho e envolvimento de todos os segmentos sociais comprometidos com a consolidação do preceito constitucional que garante o direito universal à educação.
Além das ações básicas como reabertura das escolas com vacinação de estudantes e garantia de condições sanitárias adequadas, o combate à evasão exige, juntamente com estímulos que despertem interesses pela aprendizagem, o atendimento de necessidades mínimas para uma presença qualificada na escola, como alimentação, material pedagógico e transporte. A replicação de práticas que alcançam bons resultados, como a desenvolvida em União da Vitória, também pode se constituir em atalhos para a reinserção de alunos nas salas de aula.
Na avaliação da pedagoga Márcia Senka Tonkio, entre os reflexos da pandemia está o crescimento de casos de alunos com problemas de ordem psicológica. Representante do NRE junto à Vara da Família de União da Vitória, ela aponta que aumentou o número de estudantes com quadro de depressão e que necessitam de apoio. “Contamos com uma equipe de psicólogos no Cejusc que realiza esse atendimento, complementando as ações de combate à evasão. Felizmente, ocorreu uma mudança positiva na abordagem e casos de depressão passaram a ser vistos com a seriedade necessária.”
A especialista ressalta que, além de processos depressivos, outros fatores desencadeiam o afastamento dos estudos, como conflitos ocorridos no ambiente escolar ou familiar. Concorrem para o problema questões como necessidade de trabalhar, desinteresse, dificuldade de aprendizado, doenças crônicas, falta de incentivo dos pais, mudança de endereço e deficiência no transporte escolar. “Nossa equipe está nas escolas para identificar e agir para a superação das dificuldades.”
Proteção
O combate à evasão escolar na comarca observa fluxos com abordagens coletivas e individuais. Mattioli explica que, antes da pandemia, o trabalho era feito com grupos maiores, mas teve de passar por adaptações. “Agora são grupos pequenos de familiares de alunos evadidos e os próprios alunos. Prosseguimos também com a abordagem individualizada, onde se busca uma identificação mais precisa das causas.”
Segundo o juiz, já no primeiro contato, ocorre um retorno de cerca de 50% dos alunos e, no decorrer do ano letivo, outros 30% retornam ao ambiente escolar. “Sempre alcançamos um índice médio de 80% de retorno seguro, que não vai resultar em nova evasão.”
Ele explica que o programa consegue reinserir um número considerável de estudantes em sala de aula no primeiro quadrimestre do ano letivo, criando perspectivas concretas para este aluno conclua o ano com bom aproveitamento, sem necessidade de repeti-lo. “No ano de 2020, infelizmente, não pudemos intensificar a cobrança pelo retorno às aulas porque aquele que passa fome precisa, primeiro, ter o seu direito essencial à alimentação, ter suas demandas mais prementes atendidas.”
Já em 2021, explica o juiz, foi adotado uma ação mais focada na questão social, no atendimento das necessidades das famílias. “No período mais sensível da pandemia, reforçamos o trabalho para obtenção de doações não só de equipamentos eletrônicos, mas de cestas básicas e artigos que permitissem uma estruturação familiar mínima para viabilizar o acompanhamento de aulas on-line pelo estudante.”
Em 13 anos de atuação no combate à evasão escolar, Mattioli aponta que, muitas vezes, mudanças na administração pública se transformam em obstáculos ou ameaça de retrocesso para o programa. “Às vezes, nos deparamos com gestores que adotam linhas superadas e querem recorrer à repressão para combater indisciplina, por exemplo. Nos preocupamos quando nos deparamos com visões pouco humanistas, mas estamos sempre dispostos ao diálogo com quem tem o poder de deliberar sobre políticas públicas.”