Justiça criminal e negócios corporativos (II)

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Daniel Andrés Baez Brizueña*

danan1011@hotmail.com

Reproduzimos a segunda e última parte do discurso proferido pelo  Papa Francisco no Palácio Apostólico do Vaticano em audiência os participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, que se realizou em Roma, de 13 a 16 de novembro de 2019, sobre o tema “Justiça criminal e negócios corporativos” . Boa leitura!!

Sobre alguns abusos do poder sancionário

Para concluir essa parte, gostaria de me referir a alguns problemas que se agravaram ao longo dos anos desde o nosso encontro anterior.

  1. O uso indevido de prisão preventiva

Eu havia assinalado com preocupação o uso arbitrário da prisão preventiva. Infelizmente, a situação se agravou em várias nações e regiões, onde o número de detentos sem condenação já ultrapassa cinquenta por cento da população carcerária. Esse fenômeno contribui para a deterioração das condições de detenção e é a causa de um uso ilícito das forças policiais e militares para esses fins. A prisão preventiva, quando aplicada sem a ocorrência de circunstâncias excepcionais ou por um período excessivo, viola o princípio de que todo acusado deve ser tratado como inocente até que uma condenação definitiva estabeleça sua culpa.

2. O incentivo involuntário à violência

Em vários países, foram implementadas reformas da instituição da legítima defesa e foi feita uma tentativa de justificar crimes cometidos por agentes das forças de segurança como formas legítimas de cumprimento do dever. É importante que a comunidade jurídica defenda os critérios tradicionais para evitar que a demagogia punitiva degenere em incentivo à violência ou uso desproporcional da força. São comportamentos inadmissíveis em um estado de direito e, em geral, acompanham preconceitos racistas e desprezo por grupos socialmente marginalizados.

  • A cultura do descarte e a do ódio

A cultura do descarte, combinada com outros fenômenos psicossociais difundidos nas sociedades de bem-estar social, está mostrando a grave tendência de degenerar em uma cultura de ódio. Infelizmente, existem episódios não isolados, certamente necessitando de uma análise complexa, nos quais encontram vazão os problemas sociais tanto dos jovens como dos adultos. Não é por acaso que às vezes reaparecem emblemas e ações típicas do nazismo. Confesso que, quando ouço algum discurso, alguma pessoa responsável pela ordem ou pelo governo, me lembro dos discursos de Hiltler em 1934 e 1936. Hoje. São ações típicas do nazismo que, com suas perseguições contra judeus, ciganos, pessoas de orientação homossexual, representam o modelo negativo por excelência de uma cultura do descarte e do ódio. Assim se fazia naquele momento e essas coisas renascem hoje. Precisamos estar vigilantes, tanto no âmbito civil como eclesial, para evitar qualquer possível comprometimento – que se supõe involuntário – com essas degenerações.

4. O lawfare

Verifica-se periodicamente o recurso a falsas acusações contra líderes políticos, apresentadas em conjunto pelos meios de comunicação, adversários e órgãos judiciais colonizados. Dessa forma, com os instrumentos próprios do lawfare, é instrumentalizada a luta, sempre necessária, contra a corrupção a fim de combater governos indesejados, reduzir os direitos sociais e promover um sentimento anti-político que beneficia aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário. E, ao mesmo tempo, é curioso que o recurso a paraísos fiscais, um expediente que sirva para ocultar todo tipo de crime, não seja visto como uma questão de corrupção e criminalidade organizada. Da mesma forma, fenômenos maciços de apropriação de recursos públicos passam despercebidos ou são minimizados como se fossem meros conflitos de interesse. Convido todos a refletir sobre isso.

Apelo à responsabilidade

Gostaria de dirigir um convite a todos vocês, estudiosos do direito penal, e àqueles que, em diferentes funções, são chamados a desempenhar funções relacionadas à aplicação do direito penal. Tendo em mente que o objetivo fundamental do direito penal é tutelar os bens jurídicos de maior importância para a coletividade, cada tarefa e cada função nesse âmbito sempre têm uma ressonância pública, um impacto sobre a coletividade. Isso requer e ao mesmo tempo implica uma responsabilidade mais grave para o operador da justiça, em qualquer grau que ele esteja, desde juiz, o funcionário da chancelaria, a agente da força pública.

Toda pessoa chamada para realizar uma tarefa nesse âmbito deverá ter constantemente presente, por um lado, o respeito à lei, cujas prescrições devem ser observadas com atenção e dever de consciência adequados à gravidade das consequências. Pelo outro, deve-se lembrar que a lei sozinha nunca pode alcançar os propósitos da função penal; ocorre eu também a sua aplicação se realize em vista do bem efetivo das pessoas em questão. Essa adequação da lei à concretude dos casos e das pessoas é um exercício tão essencial quanto difícil. Para que a função judiciária penal não se torne um mecanismo cínico e impessoal, precisamos de pessoas equilibradas e preparadas, mas acima de tudo apaixonadas – apaixonadas! – pela justiça, cientes do grave dever e da grande responsabilidade que desempenham. Somente assim, a lei – toda lei, não apenas a lei penal – não será um fim em si mesma, mas a serviço das pessoas envolvidas, sejam elas os autores dos crimes ou aqueles que foram ofendidos. Ao mesmo tempo, agindo como instrumento de justiça substancial e não apenas formal, o direito penal poderá cumprir a tarefa de proteção real e efetiva dos bens jurídicos essenciais da coletividade. E certamente devemos ir em direção a uma justiça penal restaurativa.

Rumo a uma justiça criminal restaurativa

Em todo crime, há uma parte lesada e dois laços que sofreram danos: o responsável pelo fato com sua vítima e aquele do mesmo com a sociedade. Destaquei que entre a pena e o crime existe uma assimetria e que a realização de um mal não justifica a imposição de outro mal como resposta. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de justiçar o agressor.

Na visão cristã do mundo, o modelo de justiça encontra uma perfeita encarnação na vida de Jesus, que, depois de ser tratado com desprezo e até com violência que o levou à morte, em última instância, em sua ressurreição, deixou uma mensagem de paz, perdão e reconciliação. São valores difíceis de alcançar, mas necessários para a boa vida de todos. E retomo as palavras que a professora Severino proferiu sobre as prisões: as prisões devem sempre ter uma “janela”, ou seja, um horizonte. Olhar para uma reinserção. E devemos, sobre isso, pensar profundamente sobre a maneira de administrar uma prisão, a maneira de semear a esperança de reinserção; e pensar se a pena é capaz de levar para tal meta essa pessoa; e também o acompanhamento disso. E repensar seriamente a prisão perpétua.

As nossas sociedades são chamadas a avançar em direção a um modelo de justiça fundado no diálogo e no encontro, para que, sempre que possível, os vínculos afetados pelo crime sejam restaurados e os danos causados reparados. Não acredito que seja uma utopia, mas certamente é um grande desafio. Um desafio que todos devemos enfrentar se quisermos resolver os problemas de nossa convivência civil de modo racional, pacífico e democrático.

* Daniel Andrés Baez Brizueña é formado em Teologia, Ciencia das religiões, Marketing, Letras e Filosofia.

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