Justiça criminal e negócios corporativos (I)

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Daniel Andrés Baez Brizueña*

danan1011@hotmail.com

O Papa Francisco recebeu no Palácio Apostólico do Vaticano em audiência os participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, que se realizou em Roma, de 13 a 16 de novembro de 2019, sobre o tema “Justiça criminal e negócios corporativos”. Aproveito este espaço para reproduzir o Discurso na integra do Papa Francisco em duas partes. Hoje reproduzirei a primeira parte. Boa leitura!!

Sobre o estado atual do direito penal

Há várias décadas, o direito penal incorporou – especialmente a partir de contribuições de outras disciplinas – diferentes conhecimentos sobre algumas problemáticas relacionados ao exercício da função sancionadora. Eu me referi a alguns deles no encontro precedente.

No entanto, apesar dessa abertura epistemológica, o direito penal não conseguiu se se livrar das ameaças que, em nossos dias, pairam sobre as democracias e a plena vigência do Estado de Direito. Por outro lado, o direito penal muitas vezes descuida dos dados da realidade e, dessa maneira, assume a aparência de um conhecimento meramente especulativo.

Vejamos dois aspectos relevantes do contexto atual:

1. Idolatria do mercado

A pessoa frágil e vulnerável se vê indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, que se tornaram regra absoluta (cf. Evangelii gaudium, 56; Laudato si’, 56). Hoje, alguns setores econômicos têm mais poder do que os próprios Estados (cf. Laudato si ‘, 196): uma realidade ainda mais evidente em tempos de globalização do capital especulativo. O princípio da maximização do lucro, isolado de qualquer outra consideração, leva a um modelo de exclusão – automático! – que ataca de modo violento aqueles que sofrem no presente pelos seus custos sociais e econômicos, enquanto as gerações futuras são condenadas a pagar os custos ambientais.

A primeira coisa que os juristas deveriam se perguntar, hoje, é o que podem fazer com seus conhecimentos para combater esse fenômeno, que coloca em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade. Em termos concretos, o desafio atual para todo advogado penal é conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, com a prisão em massa, a aglomeração e tortura nas prisões, arbitrariedade e abusos das forças de segurança, expansão no âmbito da pena, a criminalização dos protestos sociais, o abuso da prisão preventiva e o repúdio às garantias penais e processuais mais elementares.

2. Os riscos do idealismo penal

Um dos principais desafios atuais da ciência criminal é a superação da visão idealista que assimila o fato de ser realidade. A imposição de uma sanção não pode ser moralmente justificada com a suposta capacidade de fortalecer a confiança no sistema normativo e na expectativa de que cada indivíduo assuma um papel na sociedade e se comporte de acordo com o que se espera dele.

O direito penal, mesmo em suas correntes normativistas, não pode desconsiderar fatos elementares da realidade, como aqueles que manifestam a operação concreta da função sancionadora. Toda redução dessa realidade, longe de ser uma virtude técnica, ajuda a esconder as características mais autoritárias do exercício do poder.

O dano social dos crimes econômicos

Uma das omissões mais frequentes do direito penal, consequência da seletividade das sanções, é a escassa ou pouca atenção que os crimes dos mais poderosos recebem, sobretudo a macro delinquência das corporações. Não estou exagerando com essas palavras. Aprecio que o vosso Congresso tenha levado essa problemática em consideração.

O capital financeiro global está na origem de crimes graves, não apenas contra a propriedade, mas também contra as pessoas e o meio ambiente. Trata-se de uma criminalidade organizada, responsável, entre outras coisas, pelo excesso de endividamento dos Estados e pela pilhagem dos recursos naturais de nosso planeta.

O direito penal não pode permanecer estranho à conduta em que, tirando proveito de situações assimétricas, uma posição dominante é explorada em detrimento do bem-estar coletivo. Isso acontece, por exemplo, quando os preços dos títulos da dívida pública são artificialmente reduzidos, através da especulação, sem se preocupar que isso influencie ou exacerbe a situação econômica de inteiras nações (cf. Oeconomicae et pecuniariae quaestiones. Considerações sobre um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro, 17).

São crimes que têm a gravidade de crimes contra a humanidade quando levam à fome, pobreza, migração forçada e morte por doenças evitáveis, desastres ambientais e extermínio dos povos indígenas.

A tutela jurídica e penal do meio ambiente

É verdade que a resposta penal ocorre quando o crime foi cometido, mas com isso não se repara o dano nem se previne a reiteração e que raramente produz efeitos dissuasivos. Também é verdade que, devido à sua seletividade estrutural, a função de sanção geralmente recai sobre os setores mais vulneráveis. Também não ignoro o fato de que há uma corrente punitivista que afirma resolver os mais variados problemas sociais por meio do sistema penal.

Em vez disso, um senso elementar de justiça imporia que alguns comportamentos, dos quais as empresas geralmente são responsáveis, não fiquem impunes. Em particular, todos aqueles que podem ser considerados “ecocídios”: a contaminação maciça do ar, dos recursos da terra e da água, a destruição em larga escala da flora e da fauna e qualquer ação capaz de produzir um desastre ecológico ou a destruição de um ecossistema. Devemos introduzir – estamos pensando – no Catecismo da Igreja Católica o pecado contra a ecologia, o “pecado ecológico” contra a casa comum, porque um dever está em jogo.

Nesse sentido, recentemente, os Padres sinodais para a Região Pan-Amazônica propuseram definir o pecado ecológico como ação ou omissão contra Deus, contra outros, contra a comunidade e o meio ambiente. É um pecado contra as gerações futuras e se manifesta nos atos e hábitos de poluição e destruição da harmonia do meio ambiente, nas transgressões contra os princípios da interdependência e na quebra de redes de solidariedade entre as criaturas (cf. Catecismo da Igreja Católica, 340-344).

Como foi relatado em seus trabalhos, “ecocídios” significa a perda, dano ou destruição de ecossistemas de um território específico, de modo que seu desfrute por parte dos habitantes tenha sido ou possa ser gravemente prejudicado. Trata-se de uma quinta categoria de crimes contra a paz, que deveria ser reconhecida como tal pela comunidade internacional.

Nesta circunstância, e através de vocês, gostaria de fazer um apelo a todos os líderes e representantes do setor para que contribuam, com seus esforços, para garantir uma tutela legal adequada de nossa casa comum.

* Daniel Andrés Baez Brizueña é formado em Teologia, Ciencia das religiões, Marketing, Letras e Filosofia.

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